domingo, 10 de janeiro de 2010

03

Aqui, onde a noite não dorme, também eu não consigo dormir, com a presença que me assombra, os restos da tua noite sobre a colcha que me cobre. Sinto-a na brisa que sopra pela janela, nas luzes que invadem o manto negro do céu, nos reflexos imperfeitos que me fazem lembrar o olhar e as palavras, a pele e a tinta negra que cobre o pulso num círculo perfeito que nunca cheguei a provar.

Aqui, onde tudo é grande e majestoso, nem isso me impede de reconhecer a tua singularidade por entre as milhares de caras anónimas que sobem e descem as avenidas. Sinto o perfume nos cheiros das bancadas, por entre tantos odores novos e estranhos, mas quase sempre fascinantes. Procuro a razão daquela noite nesta tarde de domingo, numa probabilidade improvável de nunca te voltar a ver. Mesmo assim sei-te no escuro, na cegueira total, como se o retrato estivesse cravado na memória daqueles minutos de reconhecimento.

E não és nada, eu sei. E mesmo assim gosto. Às vezes a certeza do ser nada é melhor do que a de ser e querer tudo. Se nunca te respirei nunca ficarei sem ar. Se nunca te toquei nunca te quebrarei. E mesmo assim gosto. Gosto que sejas apenas esta presença que me faz ficar acordado, que me fez sentir visível no meio do escuro onde a música tocava. Gosto que sejas o reconhecimento mal entendido pelos outros, mas que tu e eu percebemos tão bem. Porque a noite não foi em vão, e o sorriso marcou o olhar inesperado que eu e tu bebemos naqueles instantes sussurrados em segredo.

Aqui, onde a noite não dorme, um pássaro voa no céu da manhã anunciada nos tons laranja que raiam nos milhares de vidros iluminados que sobem até ao infinito. Mas o pássaro voa mais alto, acima de tudo, acima de todos, sozinho nesta alvorada. É libertador, como o grito que lanço no nada e que ecoa por todo o meu corpo, dos ossos até à flor da pele e que me faz estremecer de prazer, soltando o que estava preso em mim há muito, muito tempo. E sou aquele pássaro que desapareceu no infinito, que voou para onde mais ninguém o viu, para descobrir novos mundos, novas experiências, novas pessoas, uma nova vida.

Aqui, onde a noite não dorme, também eu sonho acordado, desperto por tudo aquilo que me faz sentir assim, desperto por ti.

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