domingo, 24 de janeiro de 2010

05

Se esquecesse a vontade de te querer perderia a parte de mim que nunca encontrei ao longo de todos estes anos, enterrada na pele que me escondia a verdade que sempre soube de cor mas menti aos olhos da existência. Sabia-lhe o cheiro e a textura, mas moldava-a na certeza de que poderia, um dia, mudar a minha maneira de ser.
Encontrar-te deu um outro significado à existência da matéria, ao respirar do ar pesado carregado de chuva e de vida. Pensei que tudo se desmoronasse na dificuldade do que escondido de todos parecia simples, que se tentasse perdesse o chão e o céu voasse para longe de mim. Mas apenas encontrei o calor de uma tarde de Verão no meu corpo trémulo e encharcado, um catalizador das dúvidas que sempre me deram abrigo.
Sei que a vontade de sentir o teu manto níveo de pele contra o meu seria o suficiente para me fazer ficar, mas apenas na certeza de o poder encontrar no meio da escuridão, enrolado nos lençóis caídos no temporal que engoliria os nossos corpos. Mas a ideia de te ver partir através dos anos, numa indiferença cortante que faria sangrar os campos de trigo raiados por um final de dia, dançando ao vento da mudança, seria demasiado insuportável para mim.
Quando não tinha nada não me importava perder. As dívidas jamais se poderiam alimentar de mim, porque nada lhes tinha para dar. Mas depois de ganhar um coração desmaio na visão de o ter arrancado através do peito, de me desfazerem a carne, pintarem telas de tragédia com o sangue da paixão, de me partirem os ossos e me queimarem em cinzas que se dissiparão numa viagem sem retorno, onde jamais me poderás encontrar.
Sofro na minha condição finita. Temo por saber que posso ficar a meio de um sonho, de acordar na noite, em sobressalto, e de saber que nunca saíste das páginas do livro, que sempre foste ficcional e que o toque foi pura imaginação. O teu cheiro já não existe ao pé de mim e as últimas palavras são ecos que me assombram sob a luz da lua.
Sei que te quero, mas que não te encontro quando estico os dedos. O piano toca sozinho, na poeira da sala, sem a tua melodia a acompanhar. O som continua triste, mas agora é trágico. As notas continuam afinadas, mas num tom incerto.
Gostava de ficar aqui para sempre, mas apenas tu podes fazer a travessia dos séculos. Só me resta a arte final da humanidade, a peça impressionista que esquece todas as escolas do mundo e regressa à origem que precede a criação.
No nada serei eu e as memórias, na eternidade tu e as lembranças que, apesar de tudo, sei que não podes apagar. Talvez assim consiga suportar a ideia de que vivi.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

04

Cortei um pedaço de pele do meu pescoço, onde me beijaste.

Só queria expulsar o teu cheiro de mim.

domingo, 10 de janeiro de 2010

03

Aqui, onde a noite não dorme, também eu não consigo dormir, com a presença que me assombra, os restos da tua noite sobre a colcha que me cobre. Sinto-a na brisa que sopra pela janela, nas luzes que invadem o manto negro do céu, nos reflexos imperfeitos que me fazem lembrar o olhar e as palavras, a pele e a tinta negra que cobre o pulso num círculo perfeito que nunca cheguei a provar.

Aqui, onde tudo é grande e majestoso, nem isso me impede de reconhecer a tua singularidade por entre as milhares de caras anónimas que sobem e descem as avenidas. Sinto o perfume nos cheiros das bancadas, por entre tantos odores novos e estranhos, mas quase sempre fascinantes. Procuro a razão daquela noite nesta tarde de domingo, numa probabilidade improvável de nunca te voltar a ver. Mesmo assim sei-te no escuro, na cegueira total, como se o retrato estivesse cravado na memória daqueles minutos de reconhecimento.

E não és nada, eu sei. E mesmo assim gosto. Às vezes a certeza do ser nada é melhor do que a de ser e querer tudo. Se nunca te respirei nunca ficarei sem ar. Se nunca te toquei nunca te quebrarei. E mesmo assim gosto. Gosto que sejas apenas esta presença que me faz ficar acordado, que me fez sentir visível no meio do escuro onde a música tocava. Gosto que sejas o reconhecimento mal entendido pelos outros, mas que tu e eu percebemos tão bem. Porque a noite não foi em vão, e o sorriso marcou o olhar inesperado que eu e tu bebemos naqueles instantes sussurrados em segredo.

Aqui, onde a noite não dorme, um pássaro voa no céu da manhã anunciada nos tons laranja que raiam nos milhares de vidros iluminados que sobem até ao infinito. Mas o pássaro voa mais alto, acima de tudo, acima de todos, sozinho nesta alvorada. É libertador, como o grito que lanço no nada e que ecoa por todo o meu corpo, dos ossos até à flor da pele e que me faz estremecer de prazer, soltando o que estava preso em mim há muito, muito tempo. E sou aquele pássaro que desapareceu no infinito, que voou para onde mais ninguém o viu, para descobrir novos mundos, novas experiências, novas pessoas, uma nova vida.

Aqui, onde a noite não dorme, também eu sonho acordado, desperto por tudo aquilo que me faz sentir assim, desperto por ti.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

02

Ainda me lembro da última vez que estivemos juntos. Estavas ali parado, a meia-luz, enquanto eu me aproximei pelas sombras e te olhei nos olhos. Nada em ti tinha mudado à excepção da expectativa que brilhava no sorriso falso.
Eu ali, confiante que precisava de ti. Tinha ultrapassado todos os desejos silenciados e moldei-os na boca enquanto me chegava ainda mais perto e te sussurrava ao ouvido. As mãos tremiam-me pela verdade que esperei anos para te dar. Era o fim dos jogos e das histórias e o início da minha realidade fantasiada.
Em jorros, verti todo o meu coração sobre ti. Cortei a minha alma ao meio e ofereci-te metade. Mas continuavas inerte, a luz reflectida na tua pele. Estavas frio quando te toquei e não foste capaz de dizer uma palavra. Calei-me. Estava no reino do silêncio e tu eras o rei.
Pela primeira vez precisei do teu corpo e tu transformaste-te em estátua. Os teus traços de pedra eram o esboço da tua emotividade. Não mexeste sequer um dedo, mas a tua faca fez-me um corte profundo que até agora ainda não aprendi a suturar.
Escorreguei pelo teu ombro despido e tentei agarrar-te o braço. Mas caí ao chão porque não estavas ali.

E eu ainda aqui estou, sobre a madeira pisada, à espera de te ver mexer, de sentir que esse sorriso é real, enquanto a esperança sangra para fora do meu corpo. Até lá, como poderei esquecer?