segunda-feira, 20 de setembro de 2010

08

Os diários estão em branco, imaculados, tal qual vieram da loja, alinhados na estante como quem espera testemunhar um acontecimento digno de ser gravado perpetuamente a tinta, desafiando o tempo e a mortalidade.
O telefone continua silencioso, não perturbando nunca a gravidade que cai por estas paredes, que se infiltra pelas frechas da porta ou por uma nesga aberta na janela, para repousar eternamente neste chão de morte e sofrimento.
As mensagens jamais poderão chegar, perdidas no tempo estagnado que ele vivera outrora, mas que deixara para trás, num ímpeto irracional de agarrar um outro, mais futuro e incerto, que nunca conseguiu alcançar.

Cai, por isso, no sofá do descanso eterno, longe do mundo que o ignora e que prefere esquecer que existe. Os sapatos tombados no chão são agora memória de uma viagem que os seus pés descalços não voltarão a empreender. As mãos nas pontas dos braços pendem como os ponteiros do relógio, enforcados numa fuga ao tempo que os julga com tom acusador, relembrando cada gesto desperdiçado, o talento que ficou suspenso nas teclas do piano.
E não anoitece, e muito menos amanhece, porque ele estagnou simplesmente, um homem dormente que nada tem a contar, nem mesmo a passagem dos dias que deveria iniciar cada página branca dos diários adormecidos. E assim ficará até ao dia em que chegue uma carta ao seu correio, mal endereçada, e que o lembre da solidão a que está votado, das paredes de sombra que caem sobre si, impedindo-o de ver o sol que tudo rasga para lá das persianas corridas.

Talvez lhe batam à porta por engano numa correria entre andares e o obriguem a fechar-se de novo em si após a explicação. Porque mais ninguém parece entender o que ele sentiu, o que ainda sente e não poderá deixar de sentir até que lhe pare o coração, até que a vida se escape do seu rosto, como há muito escapou do dos retratos enforcados no corredor, somente persistentes porque imortais na tela; até ao dia em que a casa arda e todos os olhares silenciosos e acusadores deixem de se fazer ouvir.
Talvez, sim... talvez um dia. Até lá ele continuará deitado, derrotado pelo peso que o habita e sozinho não consegue suportar. Até lá a campainha continuará a ser um vazio, um lapso entre a porta que a precede e a que se lhe segue; as cartas manterão a sua rota distante, o auscultador permanecerá acorrentado ao telefone soturno e os diários figurarão brancos na estante, tal qual foram comprados, há tanto tempo atrás...