quarta-feira, 27 de abril de 2011

10

Bateu a última meia-noite e com ela tudo se desmoronou. Tudo, de repente, pareceu mais real, mais vivo. A noite abriu-se para acolher o sonhador uma vez mais, mas este, agora desperto do feitiço, já não dormia na espera eterna, rodeado de espinhos e rosas negras. Quebrou-se a dança onírica e a espera na torre. O sapato deixou simplesmente de servir. O tempo havia passado e mudado tudo. Foi como o cair da última pétala, sem um beijo que viesse salvar o castelo e todos aqueles que nele vivem.

Sobre os lençóis sobressaltados, definham as mãos que seguram o livro. As últimas páginas ficam por ler e paira a incógnita de um final feliz. Por enquanto as fadas são insectos e os dragões continuam vigilantes. As sombras continuam flamejantes, ocultas por debaixo da cama, à espera do momento certo para tomar o salão de baile e finalizar as valsas outrora profetizadas como intermináveis.

Parece que foi tudo há muito, muito tempo. Mas perdeu-se a dormência do sonho e as horas ganham agora outro sentido. Nestas badaladas, o Príncipe Filipe virou costas à malícia que se instalou no reino e fugiu para longe, céptico quanto ao poder do amor. O capuchinho vermelho deixou-se comer pelo lobo mau, sem ninguém que o salvasse. A Alice nunca acordou do sonho e, sem encontrar o caminho de volta pela toca do coelho branco, cortaram-lhe a cabeça. A estrada amarela só guiava, quem por ela caminhasse, até à perdição…

Cai o terceiro dia, e o nascer do quarto confirma o quebrar do feitiço. Afinal não existem contos de fadas a não ser nos livros, destinados a ficar trancados para todo o sempre numa biblioteca labiríntica, sem fim, numa prateleira distante que poucos podem afirmar sequer ter visto. Tornam-se lenda e são desacreditados. Ao longe ouve-se uma canção de embalar, mas esta é triste, e soa a morte. A sua melodia é como o cheiro de sangue no ar, é fria como a pedra que ampara o corpo. Quem a entoa fá-lo baixinho e com lágrimas nos olhos. É um falso alento quando tudo se confirma perdido.

A luz da manhã cegou o sonhador e apagou-lhe toda a memória. Esqueceu-se de quem era e de onde vinha. O corpo sofreu toda a doença e toda a dor e acabou por morrer. Mas há quem espere o seu regresso, talvez um dia, num outro corpo, noutro lugar, num outro tempo. Há quem sonhe esse regresso e continue a procurar os livros, por ainda confiar na chave e saber ler os mapas. Quem sabe não os encontre de facto e possa ler neles um final diferente, um final feliz? Até lá continua a entoar esta canção de embalar, à espera, até que se lhe acabe o fôlego, até que o mundo pare de girar…

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

09

Tive um sonho ontem à noite.
Estavas a enterrar o meu coração.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

08

Os diários estão em branco, imaculados, tal qual vieram da loja, alinhados na estante como quem espera testemunhar um acontecimento digno de ser gravado perpetuamente a tinta, desafiando o tempo e a mortalidade.
O telefone continua silencioso, não perturbando nunca a gravidade que cai por estas paredes, que se infiltra pelas frechas da porta ou por uma nesga aberta na janela, para repousar eternamente neste chão de morte e sofrimento.
As mensagens jamais poderão chegar, perdidas no tempo estagnado que ele vivera outrora, mas que deixara para trás, num ímpeto irracional de agarrar um outro, mais futuro e incerto, que nunca conseguiu alcançar.

Cai, por isso, no sofá do descanso eterno, longe do mundo que o ignora e que prefere esquecer que existe. Os sapatos tombados no chão são agora memória de uma viagem que os seus pés descalços não voltarão a empreender. As mãos nas pontas dos braços pendem como os ponteiros do relógio, enforcados numa fuga ao tempo que os julga com tom acusador, relembrando cada gesto desperdiçado, o talento que ficou suspenso nas teclas do piano.
E não anoitece, e muito menos amanhece, porque ele estagnou simplesmente, um homem dormente que nada tem a contar, nem mesmo a passagem dos dias que deveria iniciar cada página branca dos diários adormecidos. E assim ficará até ao dia em que chegue uma carta ao seu correio, mal endereçada, e que o lembre da solidão a que está votado, das paredes de sombra que caem sobre si, impedindo-o de ver o sol que tudo rasga para lá das persianas corridas.

Talvez lhe batam à porta por engano numa correria entre andares e o obriguem a fechar-se de novo em si após a explicação. Porque mais ninguém parece entender o que ele sentiu, o que ainda sente e não poderá deixar de sentir até que lhe pare o coração, até que a vida se escape do seu rosto, como há muito escapou do dos retratos enforcados no corredor, somente persistentes porque imortais na tela; até ao dia em que a casa arda e todos os olhares silenciosos e acusadores deixem de se fazer ouvir.
Talvez, sim... talvez um dia. Até lá ele continuará deitado, derrotado pelo peso que o habita e sozinho não consegue suportar. Até lá a campainha continuará a ser um vazio, um lapso entre a porta que a precede e a que se lhe segue; as cartas manterão a sua rota distante, o auscultador permanecerá acorrentado ao telefone soturno e os diários figurarão brancos na estante, tal qual foram comprados, há tanto tempo atrás...

quinta-feira, 11 de março de 2010

07

É no suspiro final que as luzes se apagam para caíres ao chão. O sangue que mancha o lenço branco que aquece os últimos momentos da tua existência chora na certeza de nunca mais te voltar a ver. E não há música, nem olhares piedosos, não há gritos de alarme nem tons de preocupação. A indiferença marca a continuação do ódio e a intolerância guia o mundo na cega razão de que as grandes premissas têm sempre que sair vencedoras.

Posso perguntar porquê, mas tenho a certeza de que a resposta nunca me satisfará. Posso perguntar de novo, sempre confiante de que os pontos de vista nunca irão convergir. Na eterna hipocrisia dos olhares acusadores e dos gestos mortais questiono-me se alguma vez haverá vencedores e vencidos na corrida ao mesmo motivo pelo qual todos aqui estamos.

Perder os sentidos neste espaço é como cair num vazio frio com cheiro a morte, onde o tacto apenas encontra o corpo inerte que exala memórias outrora insignificantes. Não vás ainda, não cedas ao espaço que te consome nem ao tempo que te arrasta para longe daqui. Não os deixes vencer-te, não lhes dês a luta que querem, nem o sangue que anseiam derramado sobre todos os lenços e a escorrer pelas ruas, exposto e ridicularizado por todos aqueles que anseiam que desapareças, que caias num buraco fundo e que fiques para sempre debaixo da terra, longe dos seus olhares.
Levanta-te, arranja o lenço (agora escarlate) e continua, porque afinal de contas esta ainda é a melhor noite da tua vida.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

06

De todas as verdades que ficam por dizer, tu és a que eu mais gosto.

domingo, 24 de janeiro de 2010

05

Se esquecesse a vontade de te querer perderia a parte de mim que nunca encontrei ao longo de todos estes anos, enterrada na pele que me escondia a verdade que sempre soube de cor mas menti aos olhos da existência. Sabia-lhe o cheiro e a textura, mas moldava-a na certeza de que poderia, um dia, mudar a minha maneira de ser.
Encontrar-te deu um outro significado à existência da matéria, ao respirar do ar pesado carregado de chuva e de vida. Pensei que tudo se desmoronasse na dificuldade do que escondido de todos parecia simples, que se tentasse perdesse o chão e o céu voasse para longe de mim. Mas apenas encontrei o calor de uma tarde de Verão no meu corpo trémulo e encharcado, um catalizador das dúvidas que sempre me deram abrigo.
Sei que a vontade de sentir o teu manto níveo de pele contra o meu seria o suficiente para me fazer ficar, mas apenas na certeza de o poder encontrar no meio da escuridão, enrolado nos lençóis caídos no temporal que engoliria os nossos corpos. Mas a ideia de te ver partir através dos anos, numa indiferença cortante que faria sangrar os campos de trigo raiados por um final de dia, dançando ao vento da mudança, seria demasiado insuportável para mim.
Quando não tinha nada não me importava perder. As dívidas jamais se poderiam alimentar de mim, porque nada lhes tinha para dar. Mas depois de ganhar um coração desmaio na visão de o ter arrancado através do peito, de me desfazerem a carne, pintarem telas de tragédia com o sangue da paixão, de me partirem os ossos e me queimarem em cinzas que se dissiparão numa viagem sem retorno, onde jamais me poderás encontrar.
Sofro na minha condição finita. Temo por saber que posso ficar a meio de um sonho, de acordar na noite, em sobressalto, e de saber que nunca saíste das páginas do livro, que sempre foste ficcional e que o toque foi pura imaginação. O teu cheiro já não existe ao pé de mim e as últimas palavras são ecos que me assombram sob a luz da lua.
Sei que te quero, mas que não te encontro quando estico os dedos. O piano toca sozinho, na poeira da sala, sem a tua melodia a acompanhar. O som continua triste, mas agora é trágico. As notas continuam afinadas, mas num tom incerto.
Gostava de ficar aqui para sempre, mas apenas tu podes fazer a travessia dos séculos. Só me resta a arte final da humanidade, a peça impressionista que esquece todas as escolas do mundo e regressa à origem que precede a criação.
No nada serei eu e as memórias, na eternidade tu e as lembranças que, apesar de tudo, sei que não podes apagar. Talvez assim consiga suportar a ideia de que vivi.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

04

Cortei um pedaço de pele do meu pescoço, onde me beijaste.

Só queria expulsar o teu cheiro de mim.